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quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O trânsito brasileiro é um dos mais perigosos do mundo. Para mudar, o país pode aprender com seus próprios acertos

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Apenas 11% das estradas do Gabão, na África, têm alguma pavimentação. Alguns Estados do México, na América do Norte, não exigem exame prático para conceder carteira de habilitação. Na China, na Ásia, a frota de automóveis quintuplicou na última década – e três quartos dos motoristas não têm experiência ao volante. Gabão, México e China, tão diferentes em área, população e riqueza, têm algo em comum: ruas, estradas e avenidas mais seguras que o Brasil. O levantamento mais recente do Ministério da Saúde, atualizado em julho, registra 46 mil mortes no trânsito em 2012. Segundo o último levantamento da Organização Mundial de Saúde (OMS), de 2010, a taxa de mortalidade do trânsito brasileiro é de 22,5 por 100 mil habitantes – a 148a pior, entre 181 países. A segurança viária no Brasil é vergonhosa e, na média, vem piorando. O Ministério da Saúde calcula que o risco de morrer no trânsito brasileiro subiu 32% entre 1980 e 2011. No mesmo período, o risco nos Estados Unidos caiu 54%. “Já pensou o escândalo que seria se um avião de passageiros caísse no Brasil a cada dois dias? É o que acontece. Perdemos no trânsito 130 vidas por dia”, afirma Roberto Douglas Moreira, vice-presidente da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet). O problema tem presença discreta nos programas de governo dos principais candidatos à Presidência (leia na pág. 73). É pena, porque há muito a fazer. Pôr fim à tragédia do trânsito no Brasil requer mudanças nas vias, nos carros, nos motoristas a na reação a um acidente.

​Rodovias

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TRAGÉDIA Cruzes à beira da estrada em memória de vítimas na Rodovia Bungiro Nakao, em Ibiúna, São Paulo. Por dia, morrem no Brasil 130 pessoas em acidentes de trânsito (Foto: Rogerio Cassimiro/ÉPOCA)

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Segurança no trânsito (Foto: Época)

Pesquise o endereço de destino no navegador Waze, antes de começar uma viagem. Observe como o tempo estimado de chegada, calculado a partir do comportamento de outros usuários do aplicativo, será bem parecido com o seu – mesmo em trajetos de centenas de quilômetros. Apesar de ser livres para acelerar, frear e mudar de direção a cada instante, carros comportam-se como folhas boiando num rio. Seguem um fluxo. “O trânsito tem um ritmo próprio”, diz o piloto de testes e instrutor de direção César Urnhani. “É muito difícil o motorista andar mais rápido ou mais devagar que o ritmo natural da via.” Nas investigações de acidente de trânsito, a culpa geralmente recai sobre o motorista. Como explicar quando dezenas de acidentes ocorrem no mesmo trecho de uma rodovia? Foram registrados 158 acidentes apenas no quilômetro 264 da BR-101, em 2011, segundo o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit). Isso significa um acidente naquele trecho a cada 55 horas. “Existe campanha para o pedestre atravessar na faixa. Mas a faixa está onde os motoristas enxergam? Não adianta punir o motorista por não ver algo que estava fora de seu campo de visão”, diz Ney Pereira, do comitê de segurança da SAE Brasil, associação de engenheiros da indústria da mobilidade. “Precisamos incluir nos cálculos o comportamento humano. É o que faz a Suécia, referência mundial em engenharia de tráfego.”

A MELHOR RODOVIA A Rodovia dos Bandeirantes, primeira no ranking da CNT. Uma empresa privada cuida da conservação e do socorro a acidentados (Foto: Ricardo Teles/Pulsar Imagens)

A MELHOR RODOVIA A Rodovia dos Bandeirantes, primeira no ranking da CNT. Uma empresa privada cuida da conservação e do socorro a acidentados (Foto: Ricardo Teles/Pulsar Imagens)

A Confederação Nacional do Transporte (CNT), que representa transportadoras, avalia as estradas brasileiras em projeto, conservação e sinalização. O ranking da CNT de 2013 serve de argumento para os defensores das parcerias entre Estado e empresas privadas. Os 20 melhores trechos do Brasil estão sob a gestão de concessionárias. Os 20 piores não estão, num total de 109 avaliados. As melhores estradas do Brasil já eram boas antes de passar à gestão privada. As piores não passariam ao topo da tabela apenas por mudar de mãos. Mesmo com a ressalva, o ranking da CNT deixa claro que a boa administração de uma rodovia pede a agilidade para investir típica das empresas privadas e o fluxo regular de dinheiro para obras, garantido por pedágios que sigam uma lógica de mercado.

O governo da presidente Dilma Rousseff foi lento na concessão de rodovias, atrasado por denúncias de corrupção no Dnit e no Ministério dos Transportes. Anunciou o Programa de Investimentos em Logística: Rodovias e Ferrovias no segundo ano de governo. Fez os leilões no terceiro. Apenas agora, no quarto ano de mandato, as melhorias nas estradas começam a ser vistas. O governo Dilma tem o mérito de estimular, nos novos editais de concessão, o aumento na segurança viária. As novas concessionárias são obrigadas a duplicar as vias e a monitorar com câmeras todo o trecho sob concessão, além de cumprir metas de redução de acidentes e rapidez de resgate. A duplicação de rodovias servirá para evitar colisões de frente, o mais grave acidente de trânsito. “Os reajustes de tarifa estão atrelados à qualidade do serviço”, diz Viviane Esse, superintendente de infraestrutura rodoviária da ANTT, agência reguladora de concessões de estradas. “Pela primeira vez, o governo federal dá um incentivo financeiro à redução dos acidentes.”

A PIOR A PA-150, última colocada no ranking da CNT. Na estrada gerida pelo governo, voluntários tapam buracos com terra (Foto: Sérgio Castro/Estadão Conteúdo/AE)

A PIOR A PA-150, última colocada no ranking da CNT. Na estrada gerida pelo governo, voluntários tapam buracos com terra (Foto: Sérgio Castro/Estadão Conteúdo/AE)

Pedaços de bom caminho (Foto: Época)

Pedaços de bom caminho (Foto: Época)

Carros

Os carros no Brasil não são antigos. A frota brasileira tem, em média, oito anos e cinco meses, segundo o sindicato dos fabricantes de autopeças (Sindipeças). É menos que os 11,5 anos da frota dos Estados Unidos. O problema de segurança em nossa frota ainda é aquele identificado em 1990 pelo então presidente Fernando Collor. “Comparados com os carros do mundo desenvolvido, os carros brasileiros são verdadeiras carroças”, disse ele ao voltar de uma viagem à Europa. Quando Collor liberou as importações, tornou-se teoricamente possível comprar os carros mais seguros do mundo. Distante do poder de compra da população, a modernidade dos carros de luxo não mudou o cenário. Do ponto de vista da segurança, o trânsito brasileiro é de carroças. Carroças novas, mas ainda carroças.

O carro que melhor representa a frota americana é o Toyota Camry 2002, mais vendido dos Estados Unidos 11,5 anos atrás. Nele, os freios ABS eram opcionais baratos, que encareciam o veículo em 1,3%, e o americano fazia questão de comprar. Air bag duplo era item de série, uma exigência da lei americana desde 1998. Segundo o IIHS, instituto de pesquisa mantido pelas seguradoras nos EUA, o air bag reduz em 37% os acidentes fatais, e os freios ABS reduzem as colisões em 23%. Nos testes de colisão feitos pelo departamento americano de trânsito NHTSA, o Camry obteve quatro estrelas, em cinco possíveis.

O carro que melhor representa a frota brasileira é o VW Gol 2005, modelo mais vendido do país oito anos e meio atrás. Sua carroceria é um projeto dos anos 1980, reformado nos anos 1990. O desempenho do Gol em testes de colisão era um segredo industrial. Para ter air bag duplo e freios ABS, opcionais restritos às versões mais caras, o comprador teria de gastar 65% a mais, em relação ao modelo básico. “Ainda hoje, menos de um décimo dos carros no Brasil tem air bag”, diz Oliver Schulze, membro do comitê de segurança da SAE Brasil.

Segurança ao volante (Foto: Divulgação)

Segurança ao volante (Foto: Divulgação)

O carro brasileiro zero-quilômetro deu um salto de segurança no início de 2014, quando air bag e freios ABS tornaram-se obrigatórios. “Nossos carros estavam no nível dos modelos europeus dos anos 1990. Agora, avançaram dez anos”, diz Schulze. “Continuam defasados, sem air bags laterais e controles eletrônicos de estabilidade, mas finalmente evoluíram.” Desde 2010, o LatinNCAP – entidade ligada à Federação Internacional do Automóvel (FIA) – faz e divulga testes de colisão dos carros brasileiros. Como ocorreu na Europa e nos Estados Unidos, nos anos 1990, a publicidade desses resultados levou as montadoras a melhorar seus produtos. O VW Up!, lançado em fevereiro, é o primeiro carro popular a obter cinco estrelas no LatinNCAP. O novo Ford Ka, apresentado em julho, poderá até usar o celular dos passageiros para pedir socorro automaticamente, em caso de colisão.

Os carros pós-2014 são efetivamente mais seguros que os mais antigos. Isso dá um bom argumento aos defensores de estímulos do Estado à renovação de frota. Segundo o Cesvi Brasil, centro de pesquisas ligado a seguradoras, se toda a frota brasileira tivesse air bag, o país deixaria de gastar R$ 630 milhões, em dois anos, com a redução no número de vítimas do trânsito. O incentivo à compra do carro novo não precisaria vir por meio de incentivos fiscais ou subsídios ao financiamento, como frequentemente pedem as montadoras e os sindicatos de trabalhadores. A carga tributária sobre o carro é alta – em torno de 35%, segundo o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) –, comparada aos 6% cobrados nos Estados Unidos. Mas não destoa do absurdo cobrado nos demais produtos e serviços no Brasil. Como estímulo à renovação de frota, o Estado poderia dificultar a sobrevivência dos carros antigos.

Promessas de campanha (Foto: Divulgação)

Promessas de campanha (Foto: Divulgação)

O Estado pode estimular os carros mais seguros com impostos e vistorias obrigatórias. Hoje, o Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) segue uma lógica ruim de justiça social: cobrar mais de quem gastou mais na compra, em vez de cobrar mais de quem economiza em itens de segurança e polui mais. Pior: calculado sobre o valor de mercado do automóvel, o IPVA fica mais baixo com o passar do tempo. Quando o carro completa 20 anos, torna-se isento do imposto. “O Estado prefere um carro velho, que polui mais e é menos seguro, a um carro novo, mais moderno”, diz Schulze. Em março, a Anfavea propôs a troca do IPVA por um ICVA (Imposto sobre Circulação de Veículos Automotores). O ICVA foi proposto como uma taxa de circulação independente do valor do carro, como os pedágios. O valor fixo pesaria proporcionalmente mais aos donos de carros baratos. Países da Europa vão além no intuito de orientar a renovação de frota: cobram imposto mais alto com o passar do tempo, proporcional à emissão de poluentes. Estimulam carros mais novos e mais eficientes. O cerco ao carro antigo também ocorre em vistorias de segurança periódicas. A Alemanha exige inspeções de freios, suspensão, faróis e pneus a cada dois anos. “Os custos de manter um carro em ordem sobem com o passar do tempo”, diz Felix Seifarth, da SAE Brasil. “Com o programa de incentivo do governo alemão, o motorista entrega o carro antigo para reciclagem, em troca de um bônus para a compra de um zero-quilômetro.” No Brasil, a vistoria periódica anda para trás. A inspeção veicular da cidade de São Paulo, criada em 2008 para medir a emissão de gases poluentes, foi suspensa em 2013. “Se você tem um carro novo com pneus gastos, não adianta ABS. A lei da física não deixará esse carro parar”, diz Schulze. “Itens de segurança como freios, faróis, pneus e amortecedores são sujeitos a desgaste. Precisam ser conferidos.”
Motoristas

Metade dos mortos no trânsito tem algum traço de álcool no sangue. Cerca de 20% apresentam sinais de sonolência, segundo a Abramet. “A carga horária dos motoristas é demasiada, sobretudo entre os profissionais”, diz Moreira, da Abramet.

A tolerância zero com a embriaguez ao volante, em vigor desde 2012, é um bom ponto de partida para aumentar a segurança no trânsito. Mas o Brasil precisa reforçar seus mecanismos de controle. Numa escala de 0 a 10, a OMS dá nota 6 ao rigor da fiscalização brasileira do consumo de álcool, uso de cintos de segurança e atenção aos limites de velocidade.

A lei que obriga caminhoneiros a descansar, em vigor desde 2012, caiu numa situação bem típica do Brasil – ela ainda não “pegou”. Transportadoras reclamam da falta de pontos de descanso à beira das estradas e do alto índice de roubo de cargas. Segundo a Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística, em 2013 foram registrados 15.200 casos de roubo de mercadoria. Para Moreira, da Abramet, o país deixa os motoristas profissionais abandonados à própria sorte. “Há uma hipocrisia muito grande”, diz. “A sociedade reclama da audácia de motoboys e caminhoneiros, mas exige rapidez nas entregas.” Punir empresas pelos acidentes em que seus entregadores se envolvessem ajudaria a dar aos motoristas melhores condições de trabalho.
Reação ao acidente

O atendimento às vítimas nas rodovias no Brasil é falho. Segundo a OMS, falta um telefone unificado para emergências. Para Schulze, da SAE Brasil, o país estuda mal seus acidentes e perde a oportunidade de aprender. Para piorar, os critérios de investigação variam em cada Estado. Isso dificulta a formulação de estatísticas nacionais. Há três anos, a SAE começou a orientar os bombeiros de São Paulo sobre a melhor forma de resgatar vítimas em cada modelo de carro. “Na Alemanha, o bombeiro tem num tablet as melhores formas de cortar a carroceria ou desligar a bateria de cada modelo. Aqui, o resgate precisa decidir o que fazer na hora. É um erro básico”, diz Schulze.

Fonte: Época